o lugar das coisas

Retiro delicadamente do meu estojo tons de pastel, os poucos pincéis que restam. O fumo que borrava a tinta desvaneceu-me os outros – os que ficaram em mesas podres ou em salas quaisquer – perdidos. Com toda uma calma presumível de um momento estático, onde apenas o relógio velho da herança dos teus não dotes de boa decoração se ouve, dou início ao ritual de te construir um rosto; o mesmo de sempre - repetidamente. Um treino à memorização de cada detalhe que te preenche a vida e as mágoas. Cada música favorita; cada poema que por algum motivo – um amor desfeito – decoras-te.

Os ruídos apostados por arquitectos das palavras dão vida ao salão onde só uma vez danças-te; dão vida aos livros que nunca lês-te – imortalização em pregos espetados violentamente na parede com um padrão sujo – velho. Uma parede cheia de marcas de mãos tuas – uma parede humana; marcas tuas – nas pessoas que sujas – velhas. Não faço jus à tua eterna beleza enquanto musa de alguém e os traços em que te pinto, são verbos mal conjugados e adjectivos podres, romances onde o final está estampado na capa mal escolhida; dos autores, igualmente, mal escolhidos.

Todos os filmes a preto e branco onde te revês; o gira-discos de colecção – são todos objectos repensados enquanto não relíquias. Talvez também essa tua alma – a que coleccionas – não passe de um breve pensamento ou de uma pequena nitidez no meio de todo um desfoque visível, nesta tela que é o teu lar. Figuras baças de felicidades construídas por quem nunca a experienciou; quem nunca a viveu. Imagina-te – poesia de não poetas; orquestra de não músicos. Resultados calculados pelo eterno erro – o lugar das coisas é, definitivamente, o lugar das coisas. Não resulta a noite ser-te dia; o dia não te ser nada. Não resulta pintar um rosto que nunca foi pessoa – imagem assemelhada aos sonhos breves das insónias apaixonadas à pressa. Acabo sempre por guardar os pincéis que restam; num estojo ainda cor de pastel – acabas sempre por ser tela sem identidade. Um rosto adivinhado, no meio de flores que nem sabes cheirar enquanto mágicas; enquanto histórias de vitórias.


Alguma vez foste flor? – Alguma vez foste vitória? Se nem existes – se nem te amas.

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