escassez genética
Esta mesa que nos divide a
refeição é suficiente para conseguir digerir a comida que partilhamos. Tenho engasgado
em mim, algumas dessas palavras que se usam ao acaso, direccionadas aos
estranhos que nos interrompem o caminho e direccionadas a ti. Sabes, acho que
nunca te fiz motivo de letras minhas por ser fácil aceitar que me pertences nas
veias, enquanto os quilómetros nos dividem a vida. Depois rompes as paredes construídas
por sermos necessários em pólos diferentes, invades as minhas construções,
desfazes os meus feitos – gabas-te do escasso que te pertence temporariamente e
partes, dono da razão. Toda esta falsa composição genética que me obriga a
ficar enquanto laços – tornou esta relação obrigatória, uma rasteira ao meu bem-estar
emocional. Talvez nunca te tenha dito que sou mais do que esses fracos
adjectivos a que recorres para me preencher. Talvez nunca tenhas visto que me
desenho de cores em vez desses tons escuros em que te escondes, em que te vês
mais e maior. Lamento que a construção genética que nos tornou palpáveis tenha exagerado
em mim na necessidade de liberdade e em ti, na pouca humildade. Semelhanças
insuficientes para uma possível idealização de caminhos unos e contactos
constantes. Tenho espalhado a minha tinta, marcas registadas numa vida singular –
tenho sido dona de mim, rainha e princesa do meu próprio trono, tenho sido
guerreira – vitórias possíveis pela capacidade de me baixar perante a vida e de
me erguer, perante a luta (as lutas). Sem me esconder atrás de corpos robustos de sexos gloriados só porque sim. Uma força física que torna esta independência possível, pelo treino constante mental. Não suporto essas almas que penetram identidades fracas só por não serem o que se diz: capaz. Acho que te marco com um desses marcos com que se marca a terra e declaro
hoje – paz. Decidindo fazer desta minha vida – minha; desta minha felicidade –
minha; não me permitindo olhar para os pés porque me fazes sombra. Uma paz
simulada pelo desdém. Não permito que me sejam; que me digam; que me vejam;
enquanto reflexos narcísicos. Talvez quando a vida se cansar de mim e estas
raízes que se movem não pertencerem mais a esta terra – seja recordada como quem
fez – em vez de como quem só criticou.
Comentários